Exposição

Edmar Almeida

Dar à luz #2 Caçamba (2023)

Barco construído com madeira doada pelo Parque Estadual do Juquery, escada com nuvem e luzes de fibra sintética com luz solar.

Por que separar o elo e condutor estabelecido através do cordão umbilical entre mãe e filho?

Especialmente quando há necessidade de internação em um manicômio, que pode ser uma experiência dolorosa para todos os envolvidos, é importante lembrar que o contexto e as circunstâncias individuais podem variar e que nem todas as internações em hospitais psiquiátricos são iguais. Assim viveu a grande artista Aurora Cursino dos Santos, parafraseando Coelho Neto: “ser mãe é desdobrar fibra por fibra o coração”. A instalação “Dar a luz #2 Caçamba” é uma obra artística inédita instalada no entorno do Museu de Arte Osório Cesar. É composta por um barco em madeira de seis metros de largura por cinco de altura. O barco, fixado no solo do jardim, abriga uma escada e mastros, que dão acesso à uma nuvem de lã sintética. A obra propõe levar o público a uma experiência visual de interpretação do quadro sem título de Aurora Cursino, que retrata no centro da imagem a figura de seu filho.

Na imagem, o filho, vem de navio que “especialmente venha ver sua mãe”. Sob a tela ela escreve “um filho veio ver sua mãe dormindo/Eu Aurora Cursino dos Santos” – em clima de sonho e de realização de desejo, como sustentou Freud em “A interpretação dos sonhos”, de 1900. A instalação busca a ilusão de um sonho, a ligação entre o útero materno (barco), a escada (cordão umbilical), e a nuvem, a esperança do reencontro do filho. Tais simbologias de uma travessia narrada na obra da artista, uma eterna busca do filho, exploram o aspecto do sonho, da vida e da memória, que se cruzam em momentos de sua passagem artística pelo Juquery.

A obra traz uma jornada, assim como embarcamos em um barco a gestação marca o início de uma jornada única e transformadora. É um momento em que a mulher gera uma viagem na maternidade, com todas as expectativas, alegrias e incertezas que acompanham esse processo. Enfrentando as mudanças e desafios, o barco posicionado no jardim do Museu de Arte Osório Cesar amplia em seu contexto surrealista o fato de que durante a gestação o corpo passa por uma série de mudanças físicas (barco) e hormonais (nuvem), e a mulher enfrenta desafios emocionais, físicos e sociais, desde a dor do parto ao rompimento do cordão umbilical (escada). Assim como um marinheiro enfrenta diferentes condições climáticas e obstáculos no mar, a gestante enfrenta enjoo matinal, mudanças de humor, desconforto físico e outras transformações até o rompimento de sua bolsa gestacional, a água é um preenchimento da vida que gera seres biologicamente humanos.

Navegando por águas tranquilas e turbulentas, assim como a navegação pode ser feita em águas calmas ou agitadas, a gestação também tem seus momentos de tranquilidade e desafios. Há períodos de calmaria, quando tudo parece estar em harmonia, assim como momentos de desconforto, preocupações e incertezas. É importante estar preparada para lidar com as variações emocionais e físicas que acompanham a gravidez. A escada marca o rumo ao destino: o objetivo final da navegação da gestação é o nascimento. Assim como o marinheiro tem um destino em mente, a gestante trabalha em direção ao momento do parto e ao início da maternidade. É um período de preparação, aprendizado e antecipação para a chegada do filho. O “dar-se” não existe mais e a memória sangra como dor sem cicatrização, em meio às cordas que sustentam o peso do barco.



Fernando Limberger

Vida e Morte, para João Rubens (2023)

Instalação site specific com penas de aves tingidas.

A instalação “Vida e Morte, para João Rubens” parte da escultura “Tiradentes – Dr. Osório – Dom Pedro I – Dona Izabel”, de autoria de João Rubens Neves Garcia, para estabelecer um paralelo contemporâneo com alguns dos muitos conteúdos presentes na obra original de João Rubens. A ambivalência entre vida e morte é o mote principal para a ideia da instalação. Questões relacionadas à natureza, a partir de uma perspectiva atual, são a base para a construção plástica apresentada.

Tudo na natureza é cíclico e se equilibra através de sistemas inter-relacionados e interdependentes, porém o elemento humano vem desestabilizando as relações naturais, impondo práticas não sustentáveis de apropriação e ocupação do meio ambiente. Os desequilíbrios causados aos micros, pequenos e grandes sistemas originários vêm provocando alterações significativas nos ambientes, causando danos irreversíveis ao planeta Terra. O jardim do Museu de Arte Osório Cesar, acerca do Parque Estadual do Juquery, único remanescente do Cerrado na região Metropolitana de São Paulo, parece ser ambiente propício para suscitar reflexões sobre tais temas.

Em uma árvore adulta do jardim, próxima ao museu, o drama “vida e morte” acontece. Essa árvore é repleta de elementos nesse sentido. Ela mesma possui estruturas – troncos, galhos, ramos e folhas em movimento de crescimento assim como em processo de fenecimento. Outras vidas vegetais e animais, de insetos e de microrganismos, a utilizam como ambiente para seus ciclos de desenvolvimento. Nela, elementos em forma de “gotas” aparecem pendurados e se destacam pela tonalidade vermelho-sangue, cor complementar ao verde predominante na paisagem, e podem estar relacionados tanto à vida quanto à morte. As gotas são formadas a partir de penas naturais de aves, abatidas para consumo humano, originadas do subproduto da indústria alimentícia. Após tingimento, são comercializadas para ser utilizadas na confecção de fantasias e adereços para o Carnaval. Esse é o componente estranho inserido naquela paisagem formada por elementos naturais, porém, assim como a paisagem, construídos a partir de projeto humano. Deste modo, a dicotomia “vida e morte”, sugerida a partir da figura de Tiradentes antes da execução, na obra de Rubens, se expande para outras reflexões.

Jp Accacio

Volta pra Casa (2023)

Cartões-postais com impressão frente e verso e página web com informações sobre o projeto e galeria de fotos e vídeos.

A mensagem “VOLTA PRA CASA”, assim mesmo, sem pontuação, pode denotar muitas coisas: uma ordem, um pedido, uma afirmação, uma dúvida, uma súplica, um acontecimento, um desejo, ou tudo isso junto.

“Casa” é um termo que tem uma paradoxalidade rara: ao mesmo tempo que é imediatamente compreendido, pode levar a um universo de diferentes interpretações. De que casa(s) estamos falando? A de “dentro” ou a de “fora”? Uma residência ou um lugar de passagem? Um corpo, um abrigo, uma cama ou o espaço onde se está? O átomo ou o universo? Mais ainda, o que referencia este lugar? Uma geografia, uma condição financeira, um afeto, a família, o conforto, uma condição de saúde? O que é “estar em casa”? E quando se vive por mais de quarenta anos num local de tratamento psiquiátrico, onde e o quê é a sua casa? A cabeça, o manicômio ou o lugar onde se residia antes da internação? Tudo parece se anuviar mais ainda.

Estas questões envolvendo a ressignificação de “casa” vêm me ocorrendo com frequência nos últimos anos, por conta de inúmeras mudanças, geográficas e interiores, que tenho vivido. Possivelmente por isso, ao mirar a obra “Volta para Casa”, de Ubirajara Ferreira Braga, na primeira vez em que visitei o MAOC, meus sentimentos afloraram. E, ao deslocar o olhar para a frase que ele escreveu na moldura, fez-se uma simbiose absoluta.

Esta é uma obra de fácil leitura – tanto no sentido literal quanto no figurado – mas que pode provocar reflexões e entendimentos bastante distintos, cuja ideia surgiu de imediato na primeira vez em que me deparei com a pintura do autor. Meu trabalho consiste em cartões postais que serão distribuídos no MAOC e em localidades diversas do município de Franco da Rocha. Na parte frontal está uma arte gráfica na qual coloco para dentro do “quadro” a frase que Ubirajara escreveu fora dele. A moldura vermelha que desenhei representa a cor predominante do quadro do artista. Assim, minha obra traz para dentro o que ele deslocou para fora. Coloca a frase em destaque.

No verso do postal, além do espaço destinado ao preenchimento das informações para que o postal seja enviado pelo correio, há um QR Code que direciona o público para uma página web. Nela, além de mais informações sobre o projeto, convido os visitantes a participarem da obra através do envio de vídeos e fotos que contenham o que elas desejam expressar e que tenha sido despertado a partir dela: a lembrança de alguém, um sentimento ou mesmo um recado para a pessoa que receberá o cartão em caso de envio. Os destinatários também poderão participar. Cria-se assim um arquivo vivo do projeto, e outros diálogos, aproximações e desdobramentos podem surgir. 

Uma obra viva, com muitas interpretações e rumos possíveis, assim como são as “casas” para cada um de nós. 

www.jpaccacio.com/voltapracasa
@voltapracasa


Marcelo Bressanin

Alerta para o horizonte: vestível para escuta e observação do céu (2023)

Capacete preparado com fones de ouvido, binóculo, móbile e sistema de áudio (player e amplificador)

Durante a residência artística da primeira edição do projeto Soy Loco por ti Juquery, quando tive a oportunidade de investigar criativamente as particularidades do Complexo Hospitalar do Juquery, pude estabelecer um contato inicial com o acervo de obras hoje abrigadas pelo Museu de Arte Osório Cesar – MAOC, dentre as quais me chamou atenção em particular um dos trabalhos de (João) Rubens Neves Garcia, que figura a ocorrência iminente de um ataque aéreo a partir da aproximação de dezenas de aviões no horizonte e da mobilização de tropas posicionadas em solo, que apontam canhões e outros armamentos para as aeronaves.

Naquele momento, a tela do artista me impactou fortemente por seu caráter quase cinematográfico, da impressão de uma cena prestes a se desenrolar a qualquer instante diante dos olhares de seus observadores. Mais do que isso, o potencial devir daquela representação me levou a refletir sobre as possíveis sonoridades agenciadas pela imagem produzida por Rubens. A pintura, apesar de silenciosa, me pareceu, já naquele momento, chamar por escuta.

Esta primeira impressão me remete, atualmente, e diante da possibilidade de reinterpretar aquela obra, a uma discussão sobre o predomínio da visualidade na cultura ocidental em detrimento de outros aspectos da percepção, como considera o artista sonoro e pesquisador mexicano Tito Rivas, que aponta para o fato de que “[…] nas últimas décadas vem crescendo o sentido crítico no meio das ciências sociais de forma a nos advertir que existem outros enfoques perceptuais que podem nos permitir compreender o homem a partir da pluralidade dos sentidos […]”.

Assim, em “Alerta para o horizonte: vestível para escuta e observação do céu”, me aproximo da figuração de Rubens buscando fazê-la soar. E, pela primeira vez, após mais de uma década dedicada à produção de instalações, performances e intervenções nas quais venho me dedicando especificamente às sonoridades, com uso de diferentes suportes tecnológicos, arrisco uma convergência entre o som e a imagem e procuro criar uma situação na qual a observação do céu dialoga com uma peça sonora inspirada na tela de Rubens.

Mirar o horizonte com um binóculo e escutar uma composição elaborada a partir de gravações históricas de ataques aéreos da Segunda Guerra Mundial: uma proposta sinestésica de leitura da paisagem que mobiliza o olhar a partir de elementos sonoros, tão presentes em nossas apropriações do entorno.


Marilia Vasconcellos

Aenigma (2023)

Escultura de ladrilhos cerâmicos, estrutura de metal e madeira

Pesadas pinceladas edificam paredes sólidas e intransponíveis. Pintura maciça, construída em blocos. Sem sobretons, as estruturas se montam vivas e brilhantes, cravejadas de vibrantes ladrilhos terrosos e serenos arcos azuis. As janelas transparecem um cálido interior com suas luzes acesas, convidativas. O céu noturno paira sobre a cidadela silenciosa que flutua imóvel, mergulhada em um voluptuoso mar verde.

“Aenigma” foi sem dúvida o projeto mais desafiador que já fiz; uma obra extensa e minuciosa adornada de inúmeras etapas e processos. Semelhante a “Incendiário”, “Aenigma” foi um mergulho profundo nas minúcias, nos traços e elos que constroem cada centímetro na pintura de Almir D’Avila. Não é simples interpretar e materializar uma obra naif, para em seguida desconstruí-la. Como estabelecer as profundidades, ler as texturas e os volumes, criar a sensação física dessa ambiência sem me desconectar da obra original? Semanas de trabalho, horas debruçadas sobre pranchas de argila modelando, buscando imaginar a ranhura das paredes, as reentrâncias dos tijolos e a junção das telhas. Janelas vazadas, portas abertas, como se assim pudesse transparecer a calidez que te convida a entrar. 

A segunda face da obra caminhou na desconstrução da forma original, sem perder de vista o elo, a referência. Fui buscar inspiração em obras modernistas, minimalistas e nos incríveis murais de concreto de Burle Marx. Intrincadas texturas assumiram a leveza de poucos traços, volumes curvilíneos deram vida a troncos, paredes e portas. Janelas e tijolos se tornaram blocos crus e círculos fragmentados, adornando a obra de uma simplicidade única, caricata. Em sua finalização e estruturação, fui presenteada com a oportunidade de tatear a artesania da construção em metal, desde o desenho e suas adaptações até o corte e a solda. 

O resultado é uma escultura multifacetada e manipulável de ladrilhos cerâmicos abertos às luzes, sombras e texturas. Uma obra que edifica formas, mixa possibilidades construtivas complementares e também aleatórias. Um jogo de opostos. Intermináveis versões a cada movimento, como se a mesma cidade tivesse múltiplas faces.

Metamorfose (2023)

Escultura de massa de pão, caixa de acrílico, estrutura de metal e madeira

Traços perfeitamente moldados, enaltecidos, cuidadosamente pintados e glorificados por um forte rouge e olhos marcados. Os lábios carnudos e vermelhos contrastam com um rosto sereno e dormente que parece não lembrar de sua vaidosa maquiagem de festa. Seria um espelhamento, um sonho ou uma memória? Para mim, ela ecoa como máscara mortuária, imantada de uma vida passada, de lembranças inaudíveis e de histórias perdidas no tempo, mas que permanece ali delineada em seus traços, concretos e palpáveis, nos lembrando da sua inegável existência.

Há tantos relatos que permanecem vivos na minha memória desde a residência artística da primeira edição do Festival Soy Loco por Ti Juquery. Um em especial, há muito tempo, me cativa e me inspira na releitura dessa obra. Logo após a chegada de Osório César ao Juquery, ele observou que os internos se expressavam artisticamente fazendo esculturas de miolo de pão, desenhos no chão e paredes. Segundo Elizabeth Araújo Lima, autora do livro Arte, clínica e loucura: Território em mutação: “[…] Ele se admirou com a proximidade dos trabalhos com a arte moderna, valorizando o trabalho dos pacientes (…) era uma necessidade indispensável à vida de enclausuramento a que estavam submetidos, possibilitando que se refugiassem em um mundo de beleza”.

A obraMetamorfose” é uma reprodução da escultura original feita em miolo de pão, uma obra efêmera e mutável que deveria se modificar indefinidamente no curso da exposição. Para sua construção optei por viver todo o processo de feitura, louvando a tradição de fabricação dos próprios alimentos incentivada pelo Juquery em seus processos terapêuticos. A massa de pão branco foi sovada e assada para que dela fosse retirado o miolo de pão que receberia a água necessária para que se tornasse macia para a modelagem. Modelar com pão me levou a um outro tempo. Pude sentir a sua plasticidade e homenagear o início de tudo. Pude me apropriar do processo e revivê-lo. A máscara foi congelada até a véspera da exposição para se manter inativa até encontrar o repouso final em uma caixa de acrílico ao ar livre.

Existe uma sensação dúbia de fascínio e impotência em processos vivos e efêmeros, pois não sabemos o que irá acontecer. A obra se comportará como imagino, durará até o fim? Por mais simples que fosse esse projeto comparado aos outros, foi de certa forma o que mais me cativou, talvez, justamente por ter vida própria. 

“Metamorfose” celebra a memória volátil frente à inegável e implacável ação do tempo. Um sopro de vida efêmero remodelado em matéria orgânica, em miolo de pão. Antítese da máscara mortuária que dribla a morte através do tempo, congelando a fisionomia imóvel, imutável; é uma ode à vida e à deterioração física da matéria, lembrando-nos de que tudo que é vivo está em constante envelhecimento e fadado ao total desaparecimento.

Incendiário (2023)

Técnica mista de bordado sobre tule, moldura e estrutura de metal.

O museu arde em chamas sanguíneas. Como bandeiras ao vento as labaredas flamejam, dançam sobre um fundo marítimo, fluido em seus tons verde água. Ao canto a arquitetura tomba, rompendo um sistema quase cartesiano, estruturado em linhas racionais, metódicas. Um sonho incendiário. Traços decididos rompem libertários, rasgam os véus da íntima realidade, da rotina, da ordem.

Ao entrar no museu pela primeira vez, fui imediatamente arrebatada pela vibrante obra de Ubirajara Ferreira Braga, o “Incêndio no Museu Dr. Osório Cesar – Um Sonho “. Essa foi a primeira obra que vi e que escolhi. Tomada por um ímpeto de dar vazão a esse simbolismo, visualizei quase que instantâneamente a obra que construiria: um bordado em tecido translúcido, posicionado de forma a ilustrar parte da fachada do museu. Dessa forma, daria vida às intrincadas labaredas e línguas de fogo, faria por fim o museu arder em chamas.

Reproduzir e ao mesmo tempo reler uma obra é um privilégio, uma oportunidade de mergulhar nas entrelinhas, no vazio entre os traços e a forma além da forma. Já não enxergo a obra como um todo, vejo um mosaico de infinitas texturas, sombras e luzes. Dentro do processo de criação de “Incendiáriotive como base a reprodução da obra original, mas, interpretei através da linha de costura a sensação imagética e física que a obra me proporcionou. Ao mesmo tempo, assumi a transparência e a necessidade da sobreposição de forma ativa, ou seja, conectei a paisagem externa à texturas vivas, ativas a ação do tempo com suas luzes e sombras. 

“Incendiário” trouxe a oportunidade de me desfazer do controle imposto pela técnica de bordado e a sua tradicional sobriedade do ponto limpo, exato. Tratei os pontos como pinceladas, agulhadas livres, desconexas e sem guia. Me deixei encantar pelas temíveis enganchadas de linhas, nós e grumos, usando esse “defeito” para criar inusitadas texturas. O verso do bordado, algo sempre escondido, é assumido como continuidade do traço, um eco, uma sombra e um volume. Me aproprio de diversas linhas que não são comumente usadas em bordado, mesclando diferentes gramaturas, materiais, contas de vidro, aviamentos, miçangas e tintas. “Incendiário” é a materialização poética de um sonho, o sonho do Ubirajara. 


Maura de Andrade

Janelas (2023)

Xilogravuras impressas em tecidos, arame farpado, acrílico colorido e estruturas metálicas tubulares

Convidada para participar do projeto “Aproximações: diálogos contemporâneos com o acervo do Museu de Arte Osório Cesar”, vou ao encontro de expressões artísticas criadas atrás de muros, em uma realidade traumática da internação onde, em nome da ciência e do conhecimento, muitas vozes foram abafadas de forma injusta e desumana. O Hospital Psiquiátrico do Juquery guarda muitas histórias, mas para este projeto a aproximação artística destacou uma produção importante, que influenciou a arte moderna brasileira mediante artistas como Tarsila do Amaral e Flávio de Carvalho, em suas visitas ao local. A exposição “Há luz atrás dos muros” apresenta sessenta artistas dentre os quais três, durante minha visita, chamaram minha atenção de forma emotiva.

As obras de Francisco Carlos Egas e Waldemar Lucio Raymond não possuem títulos e retratam construções destacando suas janelas. Embora os dois artistas difiram em sua composição e representação, com o primeiro retratando a arquitetura moderna com linhas horizontais e verticais que se cruzam, lembrando grades, o segundo no estilo colonial, as janelas estão dispostas em uma espécie de labirinto e ambos trabalhos estão sem habitantes. A terceira obra criada por Ubirajara Ferreira Braga, intitulada “Galo de Briga”, apresenta uma parte do animal atrás de uma cerca com muitas cores e movimento em sua composição. Nesta minha seleção difícil, entre as duas representações de edificações destacando as janelas, a vida surge na forma de um animal aprisionado, em estado de alerta, esperando pela briga.

As pinturas criadas pelos artistas, das quais me aproximei, transmitem uma sensação de força através do uso da cor vívida, das pinceladas e da direção dos olhares dos artistas. Obras criadas por indivíduos que viveram à margem da sociedade devido a circunstâncias pessoais e pressões externas; na condição de internos tinham suas janelas e uma batalha constante pela sobrevivência, física e emocional. Embora as janelas fornecessem uma visão do mundo exterior, eram limitadas por grades em sua função, assim como as portas dos espaços de circulação que não permitiam o livre movimento, prendendo efetivamente o indivíduo enquanto revelavam um mundo afora imaginário e o apelo à libertação.

A instalação criada por mim contém aberturas que simbolizam janelas, através das quais os pensamentos, os sentimentos e conceitos voam sobre a brisa, representadas na impressão de plumas do rabo de galo e das asas. A suavidade dos movimentos exteriores descobre em seu núcleo, no espaço interno, padrões e matizes que podem ferir como espinhos ao se aproximarem.

Essas asas solitárias e caídas, que colocam em questão a simbologia da liberdade, da leveza, da inspiração, do espírito da alma, do céu divino, denotam o desejo de expressar sentimentos de uma fuga pelo labirinto dos pensamentos e caprichos de cada um dos três artistas, selecionados por mim. Um labirinto que encontra farpas e cores se movimentando no mesmo lugar, que resume a superação humana de Francisco, Waldemar e Ubirajara, artistas criadores de belíssimas obras que já sofreram preconceitos em sua denominação e que agora merecem atenção, como todos os que fazem parte do acervo.


Renato Almeida

Emergir efêmero da memória (2023) 

Instalação com três esculturas em argila crua, carvão e pedaços de madeiras queimadas.

Internado em 27 de junho de 1934, Albino Braz foi um dos pacientes-artistas do Hospital Psiquiátrico do Juquery. Muito reconhecido pelas suas habilidades em desenho, em seus trabalhos damos, por diversas vezes, de encontro com representações de bichos dotados de uma estranheza específica, seja pela maneira como pensa suas anatomias distorcidas, ou pela forma como às vezes Albino mescla em um mesmo animal características de seres diferentes que faz com que muitas vezes o observador se detenha e se indague em busca de uma identidade que unifique tais seres. Pássaros com pescoços alongados como os de serpentes, insetos com bicos e do tamanho de gatos, ratos com garras de tigre, são exemplos de formatações de bichos que podemos encontrar em suas obras.

No diagnóstico que recebe do Dr. Osório Cesar, médico psiquiatra que trabalhou por mais de quatro décadas no hospital, me chama atenção um trecho específico: “…esquizofrenia, excitação ligeira, ideação rápida, associação de ideias por assonância, concordância e semelhança”. Talvez resida aí uma pista da forma como Albino pensava as concepções dos seres representados, já que dentre as características da esquizofrenia uma delas é a perda de contato com distorção da realidade, esse dado somado à questão da associação por assonância, que nada mais é que uma figura de linguagem que consiste em repetir sons de vogais em um verso ou em uma frase, recurso esse muito empregado em poemas e prosas. Além de ter como acréscimo a maneira como associava as informações por concordância ou semelhança. Me pergunto como seria se essa mesma descrição não estivesse em um prontuário médico, e sim em um catálogo que trata de discutir as obras de um artista? Pois, a meu ver, poderiam ser maneiras de raciocinar muito próximas de pensamentos criativos de diversos artistas que nunca estiveram em um hospital psiquiátrico.

Talvez as mesmas características que o tornaram inapto a viver em sociedade seriam as características que o tornam muito apto a ser artista.

Na obra “Emergir efêmero da memória”, o artista Renato Almeida se propõe a fazer uma reinterpretação da obra Animais, de Albino Braz, um desenho em grafite sobre papel. Nela, podemos ver três seres diferentes, que parecem mesclar características de cavalos com cachorros, tigres e lobos, em planos e escalas diferentes. Além da própria mescla dessas características diferentes, chamam a atenção do artista duas questões, a primeira diz respeito à forma como esses animais parecem trocar olhares muitos agudos, ao mesmo tempo que parecem estar olhando para o observador da obra, até mesmo torcendo seus pescoços e posicionando suas cabeças de maneira anatomicamente desconfortáveis e até impossíveis na realidade, essa característica por si só já aproximou e prendeu a atenção do artista ao desenho.
A segunda característica que chama atenção do artista, é relacionada à questão da linguagem, mais especificamente do desenho figurativo de forma bem direta e linear, as formas muito bem delimitadas, o gesto firme e bem marcado, mesclado ao fato de as figuras estarem soltas no espaço sem um fundo que as conecte. Foi essa segunda questão que o levou a pensar essas formas tridimensionalmente por meio da escultura.

Assim, a obra “Emergir efêmero da memória” consiste em uma instalação no gramado em frente ao museu, onde três cabeças elaboradas em argila, que fazem menção aos seres presentes na obra de Albino, são posicionadas diretamente no chão sobre pedaços de carvão e madeira queimada. As cabeças emergem do chão, como se fossem uma tentativa de sobreviver a um soterramento que não é só físico, mas subjetivo e mnemônico. Uma maneira de se fazer presente e resgatar a memória dos que por ali passaram, mas também dos acontecimentos que fazem parte da história daquele território.

A escolha pelo uso de carvão e pedaços de madeira queimada recolhidos nas próprias ruínas das construções do hospital psiquiátrico, fazem alusão ao incêndio ocorrido em 17 de dezembro de 2005 no prédio da administração central do Complexo Hospitalar do Juquery, conjunto arquitetônico projetado pelo arquiteto Francisco de Paula Ramos de Azevedo na virada do século XIX e que foi Patrimônio Histórico reconhecido pelo Condephaat, acontecimento este que infelizmente prejudica o processo de resgate de nossa memória sociocultural, considerando que essa edificação representa quase 120 anos de indiscutíveis valores históricos e arquitetônicos de nossa história.

A escultura realizada em argila crua, sem passar pelo processo de queima, está fadada às intempéries climáticas no espaço externo do museu, assumindo assim suas características de efemeridade, fazendo menção às maneiras como nossas memórias permanecem em nossa mente ou como nossas memórias coletivas são tratadas ou resgatadas em nossa sociedade.

Victor Harabura

Máscara (2023)

Escultura em resina, fibra de vidro e espelhos.

As máscaras são artefatos poderosos presentes ao longo da história humana e a sua capacidade mágica possibilitou às pessoas transmitirem histórias, viajarem por mundos sobrenaturais e explicarem factos naturais e sobrenaturais.

A escolha de usar a escultura “Máscara”, do acervo do Museu de Arte Osório Cesar, partiu, principalmente, da falta de identificação do autor. A obra, com título genérico e sem uma identificação, abre a possibilidade de inúmeras leituras, sobretudo a de imaginar quem a fez e por que esse indivíduo viveu no Hospital Psiquiátrico do Juquery. Para a criação de minha obra, atentei, inicialmente, para a função da máscara para fins artísticos, utilizada, deste modo, pela primeira vez, nas antigas Grécia e Roma nos teatros. As máscaras, utilizadas nos teatros antigos, eram chamadas de personas e eram confeccionadas para conseguir ecoar as falas dos atores nos anfiteatros. De origem latina, o termo “per sonare” significa “soar através de”. Foi por meio do uso de máscaras que o público passou a distinguir a personagem do ator. Com o passar dos séculos, o termo persona passou a ser empregado como uma alegoria, uma personagem, sendo utilizado, também, pelas ciências humanas, tais como a Sociologia, a Filosofia e a Psicologia.

Na psicologia, Carl Gustav Jung afirmou que a persona é um arquétipo que dá ao sujeito a possibilidade de criar uma ou mais personagens que podem não ser, de fato, ele mesmo. Assim, a persona pode consistir na vontade que o indivíduo tem de demonstrar para a sociedade em que ele vive uma impressão que lhe seja positiva e, consequentemente, ser aceito e acolhido. Dentro de cada persona existe um conjunto de ideias que se originam da sociedade e o qual nomeamos regras sociais. Nesse sentido, a persona é essencial para a sobrevivência humana. É por meio deste recurso que nos tornamos capazes do convívio social, o que nos possibilita, inclusive, a convivência, de maneira saudável e equilibrada, com as pessoas que nos são desagradáveis

A obra “Máscara” (2023) propõe fazer uma reflexão acerca de nossas personas, sobre quais comportamentos são aceitos ou não pela sociedade. A desadaptação frente às normativas sociais pode gerar afastamento do convívio social, o que pode ter sido um dos motivos da existência dos, popularmente conhecidos, manicômios. A obra faz um convite às pessoas para que vistam suas máscaras e consigam observar, dos inúmeros fragmentos de espelhos dentro da escultura, suas múltiplas personas, fazendo uma viagem reflexiva a respeito de si mesmas.